O Silêncio no campo - Um conto
João, o engenheiro e líder do projeto espelho, não nasceu na Terra, como se lembrar de um velho país natal ? Era a era das naves médias, ônibus interestelares carregados de gente, de ferro e de esperança com prazo de validade. A colonização de Marte tinha o aspecto de insetos sobre uma bola de futebol: colônias minúsculas, casulos, caravanas que saltavam de cratera em cratera. Bases grandes eram ideias de livros antigos; a realidade era frágil e improvisada.
O projeto nasceu de pragmatismo e de fome. A Terra queimava, e a confiança na engenharia atômica havia virado cinzas após 66 derretimentos em usinas privadas, com apenas 33 vindo a público. Foi assim que surgiram os Espelhos. Uma rede de superfícies refletoras, finas, leves como papel alumínio de alta tecnologia, que, agrupadas, formavam um enxame capaz de concentrar luz em torres geradoras. Se a arquitetura do sistema solar fosse um tecido, os espelhos eram pontos de costura.
João trabalhou nos protótipos em Valles Marineris. Ele dizia que o Enxame seria um poema mecânico: milhares de pétalas, como uma flor de girassol, desdobrando-se em direção ao amanhecer. Mas nas estações de escuta profunda, nos limites de Kuiper, chegou a verdade que transformou o poema em sentença.
Ao acendermos os Espelhos, não iluminamos apenas Marte; nós ateamos fogo no meio do bosque, sinalizando nossa posição para o vazio.
Não parecia uma nave, mas um meteoro ou cometa, ainda na borda, numa trajetória que cruzaria perigosamente a órbita do planeta e a integridade do Enxame de Espelhos. A decisão foi rápida: interceptar, estudar, talvez desviar.
Enviaram uma sonda automatizada. Depois de um dia capturando informações e transmitindo dados confusos, a sonda parou completamente após diversos erros de sistema que a equipe tentou corrigir remotamente sem sucesso. A curiosidade humana, faminta por recursos e respostas, enviou uma espaçonave tripulada para coletar amostras físicas do objeto enquanto ele se aproximava. A missão foi considerada um sucesso parcial: coletaram o material, mas a nave sofreu uma pane catastrófica nos sistemas de suporte e propulsão na volta. A tripulação morreu, mas a nave, em inércia, foi resgatada e trazida para a órbita de Marte. As amostras foram baixadas. Mas, o que veio naquelas cápsulas não era minério.
Pessoas, robôs, objetos tecnológicos e animais de laboratório começaram a se transformar em luz. Era um vírus, uma "solardemia", uma forma de vida sintética e resiliente como tardígrados, programada para devorar complexidade elétrica e biológica. Ela se alimentava de diferenças de potencial, a faísca de uma bateria, o disparo de uma sinapse, e convertia essa energia em fótons coerentes e em mais cópias de si mesma. Não foi uma chegada dramática, com cilindros e trombetas. Foi um gesto discreto, como uma infecção. Aquela amostra fora ocultada por dias. Chamaram-na de Semente de Fulgor antes de entenderem o que era; depois, em documentos frios, "partículas sintéticas". Queria estudar o suficiente para a chegada, em meses.
Elas não se moviam como naves; moviam-se como partículas ao vento. E assim chegaram em dias. Pequenas dispersões que apareciam primeiro consumindo a flor de espelhos, depois os laboratórios. Marte ficou silencioso em ondas. Primeiro, dormiram as comunicações entre as estações; depois, desapareceram as cidades infláveis, consumidas em brilho e depois um vazio. O planeta, que tinha produzido as primeiras colheitas de silício e aço para os espelhos, mudou de superfície. João assistiu, de um bunker-capsula isolado, a transmissões onde habitáculos inteiros se transformavam em brilho, e o brilho, ao encontrar o regolito rico em metais, acionava uma reação que convertia minerais em mais partículas volantes, uma reação em cadeia planetária. O Enxame de Espelhos, ironicamente, serviu como o maior banquete solar: sua energia concentrada alimentou a praga, que usou a luz refletida para se espalhar pelo vácuo, mais rápido que o esperado. A Terra reagiu enviando sondas analogicas com bombas nucleares para desviar o cometa que vinha na verdade em direção a Terra. Desviado mas fragmentado, cruzou a órbita terrestre. Fragmentos minúsculos carregaram mais sementes para a atmosfera. Haviam avisos, ordens contraditórias, tentativas fúteis de isolar as redes elétricas, nada foi suficiente. Grandes cidades viram suas redes sucumbirem de dentro para fora: sinais de tráfego, luzes, marcapassos, as sinapses elétricas dos seres humanos, tudo passou a alimentar a máquina-luz. Em poucos meses, metades de continentes tinham conhecido o vazio dos circuitos mortos e o silêncio branco da conversão.
João lembra da última notícia vista antes de entrar no banker em uma floresta:
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A teoria da Floresta Escura era real, mas a geografia estava invertida. Nós, a vida biológica barulhenta, vivíamos nos "Bosques", zonas ricas em matéria e estrelas. Os predadores, silenciosos e antigos, habitavam os "Campos Abertos", os vazios interestelares frios.
A resposta não veio com uma invasão de naves, mas uma praga de luz. A Solardemia. Partículas sintéticas que devoravam eletricidade e biologia, convertendo tudo em fótons. Elas consumiram Marte primeiro. Habitáculos inteiros se transformaram em brilho. O Enxame de Espelhos, ironicamente, serviu como o maior banquete: sua energia concentrada alimentou a praga, que usou a luz refletida para saltar o abismo até a Terra mais rapidamente.
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O mundo azul reagiu. Cidades viraram constelações no chão e depois silêncio. Mas, nas florestas, existia um milagre. Tão antigo quanto os seres humanos. A química lenta e antiga das árvores anulava a fome elétrica da praga. E houve uma reação imprevista: ao se dissolver na atmosfera, a Solardemia catalisou as águas.
O céu fechou-se. O planeta chorou por 5 séculos. João, cujo corpo fora modificado pelas vacinas de longevidade da era de ouro, morre no banker após 431 anos terrestres. Um dilúvio contínuo lavou as cidades mortas, soterrou os arranha-céus sob lama e fez as florestas explodirem em crescimento. O mundo virou um santuário úmido e escuro, onde a tecnologia elétrica era mortal e a chuva era a única música.
Miguel, filho de João, e sua família viveram nessa caverna, escondidos em bunkers sob montanhas, ouvindo a tempestade que curava o mundo lá fora.
Séculos haviam passado. A chuva finalmente cessara, deixando um mundo de ruínas verdes e ar puríssimo. Miguel, com seus 140 anos, já era um homem maduro, mas, graças à herança genética do pai, aparentava uma juventude sadia. Ao saírem da caverna, encontraram os esqueletos das antigas bases de lançamento e usinas, estruturas de concreto colossais que a praga não conseguira comer totalmente.
Miguel se assustou ao ver o metal exposto, Se a luz voltar, ela buscará o metal. Precisamos enterrar os gigantes.
Coube a Rafael, neto de João, finalizar a grande obra.
Miguel não tinha memórias das naves, apenas o medo sagrado herdado do pai, e agora passado para seu filho. O novo mundo era brutal para os homens comuns, após 3 gerações, viviam ciclos curtos de trinta ou quarenta anos, ceifados por infecções e imaturidades para sobrevivência na natureza. Mas existiam uma linhagem, os "Longevos". Eles não adoeciam facilmente. Eles guardavam a matemática e a medicina.
Sob o comando de Rafael e idealizadores do futuro, as tribos começaram a cobrir as antigas usinas e torres cônicas com pedra e terra. Camada após camada, transformando a geometria industrial em montanhas artificiais. Essas pirâmides não nasceram como túmulos, mas como escudos. Eram sarcófagos para uma tecnologia que não podia mais respirar.
Gerações se passaram. Rafael finalmente descansou.
O mundo havia esquecido a palavra "engenheiro". Para o povo das vilas, Thales, o bisneto, era um "Necessário". Um Faraó.
A sociedade se organizou em torno da biologia, se separam para cobrir as principais bases ainda não soterradas. Os de vida curta, que trabalhavam o solo, olhavam para Thales e os idealizadores, como divindades encarnadas. Como não seriam deuses? Thales vivia cento e cinquenta anos. Ele sabia quando o rio encheria, pois lia os ciclos que Rafael registrava. Ele sabia curar a febre com o mofo das câmaras baixas. Para todos, ele detinha o segredo da longevidade e da ordem.
As Pirâmides tornaram-se as casas dos Necessários. Fortalezas de conhecimento, revestidas de calcário para refletir o sol sem gerar energia, protegendo o interior onde os mapas antigos e as ferramentas de precisão eram mantidos como relíquias sagradas.
Thales, após ler todos os diários de seu pai até João, um dia subiu ao topo da Grande Pirâmide, que um dia fora o reator central de uma base de lançamento. Ele não olhou para as estrelas com desejo, mas com cautela.
Lá embaixo, o povo celebrava uma colheita, seguros na sombra da pedra e da floresta. Eles contavam histórias de como os ancestrais tentaram roubar o fogo dos Campos Abertos e foram punidos pelos demônios de luz. Thales sabia a verdade química e física, mas a verdade mítica era mais segura. E sabia que um dia a verdade seria desenterrada.
Ele tocou a pedra fria do cume. Não havia ouro, nem antenas, nem espelhos. Apenas rocha muda. A humanidade voltará a um estado que lembrava o Egito antigo, uma era de grandes obras e memórias esculpidas, governada por aqueles que carregavam o tempo no sangue.
Thales olhou para o céu noturno, para os vastos espaços escuros entre as estrelas, e sorriu sem mostrar os dentes.
“Nós aprendemos”, sussurrou ele para o vazio. “Nós somos uma floresta agora. E a árvore não faz barulho.”
Nota: Escrevi esse conto baseado em várias obras e referencias, a ideia principal a teoria da floresta negra, como bosques nutritivos chamativos e campos abertos vazios e seguros. Queria deixar salvo em algum local visível. Sei da regras da comunidade, e espero que mesmo não sendo nada técnico, colabore em algo.