Para responder diretamente à sua pergunta Não, criar apps sem saber programar não é necessariamente picaretagem.
Permita-me dissecar essa questão em duas perspectivas distintas, pois é aí que reside a confusão e, por vezes, a má fé.
- A Democratização e o "Codar por Vibe":
Existe um lado genuinamente positivo na IA para a criação de software por não-programadores. Pense em um pequeno empresário que precisa de um dashboard simples para visualizar suas vendas, ou um criador de conteúdo que quer automatizar um fluxo de trabalho interno. Para esses casos, onde o objetivo é resolver um problema pontual, testar uma ideia, ou até criar algo porque não tem orçamento para contratar um dev, a IA é uma aliada fantástica.
É como a minha relação com a marcenaria. Gosto de "tentar" fazer caixas de som. Elas são, para ser generoso, rudimentares e acusticamente questionáveis. Eu sou um marceneiro? Evidentemente que não. Mas me divirto, crio algo palpável e elas até funcionam bem. Não há picaretagem alguma nisso. O problema começaria se eu tentasse vender essas caixas como equipamento de alta qualidade.
Portanto, esse vibe coding, como alguns chamam, para fins pessoais ou validações rápidas e de baixo risco, é perfeitamente aceitável e até desejável: é o DIY raiz, só que digital.
- O Desenvolvimento de Software Profissional
Aqui a conversa muda de tom. O desenvolvimento de software profissional, aquele que envolve dinheiro de cliente, dados sensíveis, reputação de empresas, escalabilidade para milhares ou milhões de usuários, segurança e manutenção a longo prazo – isso requer disciplina.
A IA, para o profissional experiente (como você), é uma ferramenta de produtividade excepcional e inevitável. Ela acelera a escrita de boilerplate, sugere refatorações, ajuda a prototipar e a se localizar. É a evolução natural do autocomplete, do LSP que muita gente já nem sabe programar sem. Da mesma forma que linguagens de alto nível nos abstraíram do Assembly para a quase todas maioria das tarefas. Nós já delegamos quase toda a escrita do código para compiladores há muito tempo; a IA é só o próximo passo lógico para quem sabe o que está pedindo e o que está recebendo.
O problema catastrófico, e o que me deixa genuinamente preocupado e um tanto farto desta discussão superficial é a galera que está sendo levada a crer que pode construir sistemas complexos e robustos delegando não apenas a escrita do código, mas a tomada de decisão e todo o processo de engenharia para uma LLM.
O X da Questão
Estou perfeitamente confortável com a IA escrevendo 100% do código, desde que um engenheiro humano competente tenha definido a arquitetura, as interfaces, os requisitos funcionais e não-funcionais (segurança, performance, escalabilidade), as estratégias de validação, os casos de verificação e é capaz de debugar e manter o que foi gerado. Sem nenhum problema, zero.
O que é inaceitável, e aí sim beira a irresponsabilidade e a picaretagem quando vendido como solução profissional, é o contrário: o humano tendo uma vaga ideia do que quer e a IA tomando todas as decisões críticas durante todo o ciclo de desenvolvimento. Alguns dos exemplos da página do Cursor, vendendo essa delegação de responsabilidade, é um sintoma dessa febre perigosa.
Concluindo:
Existe sim um caminho honesto para ensinar não-técnicos a usar IA para criar soluções simples e limitadas, com plena consciência das suas fronteiras, "brincar de ser dev". Mas a narrativa de "seja um dev profissional usando apenas IA", essa sim é a velha picaretagem de sempre com uma roupagem nova.
Estou cansado dessa conversinha de a IA vai acabar com os devs, que sempre ignora o elefante na sala: software é uma disciplina de engenharia, e não existe ferramenta mágica que substitua a responsabilidade. A IA é uma ferramenta, mas sempre vai ser uma pessoa que assina, um engenheiro de software que coloca o dele na reta, por um código que ele não compreende e confia completamente ou é lunático ou bandido. Não existe outra opção.