Do vi ao GPT: O Retorno da língua como Interface
O mouse venceu.
Vamos começar por aí, sem delongas, porque a honestidade desarma. O mouse venceu a guerra antes mesmo de a maioria de nós nascer.
A guerra: Xerox inventa a GUI. Apple rouba e populariza. Microsoft copia e domina. Touch screen é só o mouse voltando para a tela. Mesma metáfora. Apontar. Clicar. A metáfora da mesa, do ícone, do arrastar-e-soltar—bum—era intuitiva demais, visual demais, humana demais. A vitória foi tão completa que o perdedor nem sequer é lembrado como um adversário, mas como uma relíquia, uma esquisitice de programadores barbudos e administradores de sistema que ainda vivem em terminais pretos e verdes.
Vi foi criado antes da existência do mouse. É um fóssil vivo de uma ramificação diferente na árvore evolutiva da interface humano-computador. Uma realidade paralela onde, em vez de apontar para as coisas, nós aprendemos a conversar com elas.
tum tum.
A diferença é filosófica. Clicar é um gesto. d i w ("delete inner word") é uma frase.
Pense nas suas aulas de português com a tia Margarida na quarta série. Oração, sujeito, verbo, objeto. A interface do Vi não é uma coleção de atalhos aleatórios como Ctrl+Alt+QualquerCoisa; é uma linguagem modal com uma gramática rigorosa. Verbos (d para deletar, c para mudar, y para copiar). Objetos (w para palavra, s para sentença, p para parágrafo). Modificadores que funcionam como advérbios e adjetivos. Seus dez dedos não estão caçando pixels num mapa bidimensional. Eles estão compondo frases, proferindo ordens diretamente para a realidade digital.
Não é sobre produtividade. Por favor, vamos superar isso. Todo novato que usa Vim há um mês e aprende meia dúzia de comandos se acha o piloto de F1 da edição de texto. Bobagem. Na maior parte do tempo, a diferença de velocidade é marginal. Admito, com uma pontada de vergonha e pragmatismo, que ainda passo uma boa parte do meu dia com um mouse na mão, deslizando pelo VSCode, porque é fácil, é confortável, e está tudo bem.
A questão não é ser mais rápido. É sobre o estado de fluxo.
A questão é a distância cognitiva entre o pensamento e a execução. Com o mouse, você pensa: “Preciso deletar essa palavra”. Então você traduz isso em um gesto motor: largue o teclado, encontre o mouse, navegue o cursor até o início da palavra, clique e arraste até o fim, retorne ao teclado, aperte delete. Há uma série de traduções e mediações. Não é sobre os 0.3 segundos que se passaram, mas sobre todo o ruído mental.
Com a linguagem do Vi, o pensamento “deletar esta palavra” se materializa nos seus dedos como diw. Bum. Pensamento e ação são a mesma coisa. O intermediário—a interface—desaparece. Você não está mais usando um editor de texto. Você e o editor de texto são um sistema único, coreografado pela memória muscular. É o seu cérebro falando diretamente com a máquina através de uma linguagem que ambos entendem.
E aqui fica o desafio, o ritual de passagem.
Desconecte seu mouse. De verdade. Guarde-o numa gaveta por uma semana de trabalho. Oito horas por dia, cinco dias. Imprima uma folha de consulta. Você vai odiar. Os primeiros dois dias serão um inferno de ineficiência e frustração. Você vai xingar a mim, a Bill Joy, a Bram Moolenaar. Seus dedos vão parecer salsichas desajeitadas.
Mas então, algo acontece. Por volta do terceiro dia, seu cérebro, faminto por padrões, começa a conectar as coisas. A gramática começa a se internalizar. No final da semana, o mouse vai parecer uma muleta desnecessária, um dispositivo estranho e impreciso de uma era passada. E quando você o reconectar, vai apreciar sua simplicidade ainda mais, mas terá entendido o que perdeu. Terá vislumbrado o outro lado.
E não se engane, esta epifania não nasceu em algum mosteiro de código livre nas montanhas. O conselho original veio de um maníaco do Excel, um deus das planilhas dinâmicas no coração de um banco de investimentos, um cara cujo o chefe o obrigou a largar o mouse por uma semana. Todo profissional que vive dentro de um software complexo descobre isso. O artista do Photoshop, o editor de vídeo que corta quadro a quadro sem nunca tocar no mouse. Até o usuário de Emacs, nosso primo-irmão de outra dimensão.
Tem um motivo que usamos teclados. Dez dedos são mais ágeis que um ponteiro. É largura de banda, simples assim.
A diferença é que a maioria dos softwares oferece uma sopa de letrinhas, um dicionário de atalhos como acidentes históricos e remendos convenientes. Grunhidos úteis, mas ainda assim grunhidos. Vi oferece uma linguagem.
vi foi a primeira interface que falava uma língua.
O irônico, o belo e trágico nocaute cósmico, é que agora, em 2025, estamos todos voltando ao início sem perceber. Qual é a interface definitiva, a revolução que está em todos os lugares? Modelos de Linguagem. A porra do texto. Estamos novamente ensinando a humanidade a conversar com a máquina através de palavras. A verdade é que o mouse foi o maior golpe de usabilidade da história. O cérebro não aponta. O cérebro transforma o que vê em linguagem.
E isso expõe a falha fundamental de UX. Designers obcecados com paletas de cores, espaçamento de pixels, a curvatura perfeita do canto de um botão. Eles estão projetando para os olhos. Estão criando vitrines bonitas. Mas raramente projetam para os dedos e para a mente. Um atalho aqui, um menu ali, um gesto acidental acolá. Uma cacofonia de interações, não uma língua.
Porque não pensam em sintaxe e em semântica, na criação de uma linguagem coerente para interagir com o software. E se projetassem interfaces como quem projeta línguas?
Uma interface homem-máquina não de botões e menus, mas de verbos e substantivos?
É um pequeno e estúpido modelo de linguagem embutido em cada aplicativo. Um editor de imagem que traduz uma frase natural qualquer não em uma imagem gerada, mas nos comandos da ferramenta: varinha mágica > tolerância: 35 > selecionar área > abrir curvas de matiz/saturação > diminuir brilho > aumentar contraste.
O melhor jeito de usar um modelo de linguagem na sua aplicação, talvez seja como um tradutor universal entre a língua natural do usuário e a linguagem da interface do programa. O sonho do Vi.
Claro, o mouse venceu. A conveniência sempre vence. Os software do futuro provavelmente dominadas por três corporações que nos alugarão o acesso a seus oráculos universais que farão tudo por nos.
Mas linguas sobrevivem. O latim sobreviveu. O Vi sobreviveu. Porque há uma beleza e um poder irrefutáveis em possuir a sua própria forma de falar, sua própria gramática para moldar o mundo digital. É um ato de soberania.
O desafio nunca foi sobre se tornar um mago do Vim. Foi sobre entender que seus dez dedos podem falar uma língua que uma seta jamais conseguirá. Então vai. Desplugue o mouse. Fale com a máquina. Aprenda sua língua. O editor eterno. A melhor interface já feita. Uma linguagem para o futuro.