O risco oculto do SaaS com IA
Ninguém fala isso sobre empreender com Inteligência Artificial
IA em todo lugar. Todo pitch tem IA. Todo VC só quer ouvir sobre IA. Mas, tem um problema que ninguém está discutindo: o modelo financeiro mudou e a maioria dos empreendedores está construindo suas empresas como se nada tivesse mudado.
Na edição de hoje da Newsletter do Moa, eu falo sobre o risco oculto de criar um SaaS de inteligência artificial.
Eu vejo IA em todo lugar
Mês passado, eu estive no Websummit Lisboa e pude confirmar o óbvio: inteligência artificial é o hype do momento. Por lá, a grande maioria eram empresas que, de algum modo, tinham IA no seu pitch.
Além do Websummit, é possível ver IA em todos os lugares. Os novos batchs do YCombinator só tem empresas de IA. Vai falar com um venture capitalist? Se não tiver IA na tese, nem tenta. Eu mesmo, tenho vários amigos empreendedores que estão construindo empresas com suas teses 100% baseadas em IA.
Acho isso incrível. Inteligência artificial, de fato, é a grande disrupção do momento. Alguns dizem que será uma disrupção maior que o que foi a internet. Será? Não sei, não tenho bola de cristal. O que eu sei é que tem um ponto bem específico sobre empreendedorismo com IA que ninguém está levando em consideração.
Mas, antes de falar desse ponto, eu quero contextualizar com um pouco de história…
A onda Cloud e a Web 2.0
Na primeira empresa que trabalhei como programador, lá para os idos de 2010, tinha uma parada bem curiosa, que dificilmente veríamos hoje em dia. Logo que você acessava a empresa, tinha uma sala toda de vidro, cheia de racks e servidores. O pessoal chamava essa sala de “aquário”.
Era no aquário que, antigamente, ficavam os servidores da empresa. Isso mesmo! Havia servidores físicos, responsáveis por servir os sites que a empresa produzia. Veja: estamos falando de uma das primeiras empresas a trabalhar com internet no Brasil.
Pra você ter uma ideia, os caras tinham um banco de dados próprio que foi construído nos anos 80, pois, na época, não existia tecnologia necessária para a indexação das informações que a empresa disponibilizava. Vanguarda total!
Eu não peguei essa época. Quando eu comecei a trabalhar por lá, os servidores já ficavam em um data center próprio, e aqueles racks e servidores eram responsáveis somente pela infraestrutura do prédio e também por alguns servidores de teste e homologação.
Estou te contando isso porque, houve um tempo, lá nos anos 90, que colocar um site no ar significava ter que comprar servidores físicos e instalá-los, junto com toda a infraestrutura necessária. Imagina que, pra você lançar seu site, você precisava, além do servidor, se preocupar com rede, energia, redundância, backups, monitoramento físico, etc. Era caríssimo e, portanto, inviável para pequenos empreendedores.
Já no comecinho dos anos 2000, começaram a aparecer os data centers. Você continuava tendo que comprar e instalar um servidor, mas, agora, não mais no seu prédio, e sim num local específico, que já te entregava toda essa infraestrutura necessária. Ainda era caro, mas já começou a baratear.
Ai, lá na metade da década, a virtualização de servidores começou a se popularizar. Aqui, sim, aconteceu o primeiro grande salto de produtividade e de barateamento de servidores. Agora, para subir uma aplicação web, você não precisava mais de um servidor físico inteiro. Sua aplicação poderia coexistir com mais dezenas, centenas, milhares de outras aplicações no mesmo servidor.
Mas, o grande boom aconteceu mesmo um pouquinho depois, com a popularização da web 2.0 e, com isso, uma demanda latente por escalabilidade. Os YouTubes, Facebooks e MySpaces da vida cresciam muito mais rápido do que a capacidade de setup de novos servidores, naquele esquema de até então. Não dava mais para ficar comprando nem virtualizando servidor. Tinha que haver outro jeito.
Até que, em 2006, foi lançada oficialmente a Amazon Web Services, mais conhecida como AWS. Esse foi o ponto de virada da indústria. Agora, para subir uma máquina, você não precisava mais de um técnico mexendo fisicamente num servidor, ou acessando um terminal via SSH. Bastava ir no painel da AWS, dar alguns cliques, aguardar alguns segundos e… voilá! A partir de agora, infraestrutura deixa de ser hardware físico, e passa a ser API, com preços que cabem no bolso de qualquer zé ruela.
O impacto foi imediato! A partir de agora, pequenas startups são capazes de competir com os gigantes incumbentes sem precisar investir milhões em servidores.
O modelo SaaS como conhecemos
Avançando alguns anos e chegando na década de 2020, a gente encontra uma indústria de software como serviço que foi viabilizada pela “revolução cloud”, que tornou irrisório o custo de infraestrutura. Em SaaS tradicionais, custo de servidor só se torna uma questão minimamente relevante em empresas grandes e consolidadas, com faturamentos acima dos R$ 100M/ano.
Pra você ter uma ideia, segundo o meu amigo GPT, o custo médio de infraestrutura para SaaS que passam dos R$ 10M de faturamento por ano fica entre 5% e 10%. Quer ver quão pouco é isso? Vamos fazer uma comparação…
Se você opera um e-commerce, por exemplo, você vai ter uma métrica financeira chamada CMV, que é o custo de mercadoria vendida (em inglês, é COGS). De forma bem resumida, esse é o valor médio que o e-commerce gasta para vender uma mercadoria. Um e-commerce próprio, com as contas saudáveis, tem um CMV de +- 50% do seu faturamento. Ou seja: metade do seu faturamento é custo.
SaaS, teoricamente falando, não possui CMV, afinal, você não vende software, mas, sim, aluga. Mas, dá pra fazer uma ginástica financeira aqui e considerar que o CMV do SaaS seria custo de servidor, custo de API, serviços de observabilidade, etc. Levando em conta esses valores, estamos falando de uma margem de, no máximo, 15%. É MUITA diferença!
Agora, se você olhar o bottom line, ou seja, a linha final dos demonstrativos de receita de ambas as empresas, você vai ver que uma margem de lucro saudável nessas duas categorias não é tão diferente assim quanto seu CMV.
Se essa diferença não vai para o bolso dos donos da empresa, para onde vai esse dinheiro? A conclusão é simples: o custo relevante de um SaaS não é infraestrutura, mas sim, gente. O fato de o custo de servidor ser muito barato acabou incentivando o investimento em gente de altíssima qualidade (que custam muito caro).
E onde entra AI nisso tudo?
Voltando para o papo financeiro, segundo o GPT, empresas que são apenas wrappers e, na prática, apenas revendem acesso aos modelos, colocando uma pequena camada de valor em cima, possuem um CMV frequentemente maior que 60%.
Olha que loucura: estamos saindo de um modelo de CMV de, no máximo, 15% do faturamento, para um modelo de 60%, maior que de um e-commerce. É um aumento MUITO expressivo. Agora, SaaS com IA passam a ter, na prática, custo de mercadoria vendida.
Esse aumento no CMV tira, necessariamente, investimento em outras áreas. Agora, quais? Marketing? Sem marketing sua empresa não vende e, sem vendas, sua empresa quebra. Impostos? Se você não pagar seus impostos o estado toma todos seus bens e você corre o risco de ser preso. Onde sobra? Sobra na gente.
Num cenário de custos altos, falta dinheiro pra contratar gente boa. Acontece que, para trabalhar com inteligência artificial, você precisa de um time de qualificação técnica excelente. Como fazer essa conta fechar?
Alguns defendem que a própria IA é capaz de aumentar a produtividade do time. Concordo, mas, será o suficiente? A IA vai aumentar em 4x a produtividade da equipe, para compensar o aumento de 4x no CMV?
Ah, faltou um outro ponto relevante, também. Não podemos esquecer que o custo de token hoje está fortemente subsidiado por big techs e venture capital. Será que esse subsídio se sustenta até que a tecnologia avance o suficiente para a retirada do subsídio? Quanto o token vai custar, caso esse subsídio desapareça?
Conclusão
Eu não tenho dúvida que o custo da inteligência artificial vai baixar e tornar esse novo modelo de negócio da indústria SaaS sustentável no longo prazo. Apesar disso, acredito que, sim, estamos numa bolha, que pode estourar a qualquer momento. Eu diria que sou um pessimista de curto prazo, mas, otimista de longo prazo.
O meu questionamento não é sobre o modelo de negócios em si. Ele é o que é e temos pouco a fazer para mudar esse contexto macro. Meu questionamento é simples: você, que tem uma solução de IA, está levando em conta todo esse cenário? Tem um plano do que fazer, caso aconteça alguma merda no meio do caminho? Tem fôlego suficiente para sobreviver até que esse custo diminua?
Este post nasceu de uma thread que o Bruno Faggion fez no X, e a minha conclusão é a mesma que a dele: não há problema em empreender com IA. O problema está em não ter noção de que o modelo de negócio mudou, e que agora não há mais custo marginal zero em empreender com SaaS.
✉️ Esta foi mais uma edição da Newsletter do Moa!
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Além disso, pretendo também compartilhar outras coisas, como um pouco dos bastidores da construção de um negócio SaaS, as minhas opiniões e meus aprendizados. A ideia geral é ser uma documentação pública e estruturada dos meus pensamentos e aprendizados ao longo dos anos.
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