Quatre-vingt-dix-neuf: ou como o Francês prova que língua importa em programação
Você sabe como se diz 99 em francês?
Quatre-vingt-dix-neuf.
Literalmente: "quatro-vinte-dez-nove". Ou seja, (4 × 20) + 10 + 9.
Agora, imagine ensinar programação para uma criança francesa usando essa lógica. Ela precisa contar séries de 20 quatro vezes, depois somar 10, e depois somar 9. Praticamente um algoritmo, não?
Também imagine que, além disso, ela também precisa aprender que "si" ("se" em francês) é if, "alors que" é while, e "fonction" é function. Tudo em inglês, enquanto pensa em francês. E conta em base-20-híbrida.
Se isso te provocou algum questionamento, você acabou de entender por que língua materna importa em programação.
Quando a ciência encontra o óbvio
Acabamos de revisar um estudo fascinante da Universidade de Botswana que fez algo elegante: pegou 285 estudantes do ensino médio e dividiu em dois grupos. Um programou em Setswana e inglês (bilíngue). Outro só em inglês.
O que aconteceu?
O grupo bilíngue simplesmente trabalhou mais.
- Tentou 11,64 exercícios versus 9,67 do grupo inglês (20% a mais)
- Usou mais conceitos de programação
- Reportou níveis significativamente mais altos de conforto
E aqui está o dado que deveria estar em letras garrafais: mesmo quando expostos a exemplos em inglês, estudantes escolheram voluntariamente mudar os nomes de variáveis para Setswana.
Por quê? Porque é assim que o cérebro funciona. É assim que a gente pensa. É assim que a gente aprende.
O absurdo que normalizamos
Vamos fazer um exercício rápido. Você precisa explicar para um iniciante o que este código em Python faz:
while count < 100:
if count % 2 == 0:
print(count)
count += 1
Agora imagina explicar isso em português, mas todas as palavras-chave estão em inglês. Você fala: "Enquanto count for menor que cem, if count módulo dois for igual a zero...". Se você é professor ou professora, provavelmente vai dizer que isso é normal: é assim que você ensina em sala de aula.
Mas, percebe a dissonância cognitiva? Você está forçando o cérebro a fazer code-switching (alternar entre línguas) a cada linha.
É como explicar uma receita de brigadeiro, mas as ações precisam ser em alemão: "Você pega o leite condensado, depois você rühren, quando começar a ferver você reduzieren o fogo, e continua rühren até verdicken..."
Possível? Sim. Necessário? Absolutamente não.
"Foi incrível descobrir que posso programar em Setswana"
Essa frase, de um estudante no estudo, deveria nos envergonhar um pouco quando forçamos pessoas iniciantes em programação a terem que aprender inglês também.
Vivemos num mundo onde uma pessoa jovem fica surpresa ao descobrir que pode programar na própria língua, como se programação fosse um clube exclusivo onde só entra quem fala inglês.
Os dados do estudo:
- 66% dos estudantes relataram prazer ao programar na língua nativa
- 29% disseram que ficou mais fácil de entender
- Um estudante disse: "Foi fácil porque consegui entender tudo" (e ouvimos e lemos exatamente isso, em diversos eventos em que participamos pelo Brasil em 2025)
- Outro: "Ficou mais fácil para mim porque consegui interagir melhor"
Parece óbvio? É óbvio. Mas às vezes precisamos de um estudo científico para validar o óbvio.
A carga cognitiva invisível
Voltemos ao francês por um momento.
Quando um francês vê o número 99, seu cérebro não vê "noventa e nove". Vê "quatre-vingt-dix-neuf" – uma construção complexa que envolve multiplicação e adição. Pesquisas em neurociência mostram que franceses demoram milissegundos a mais para processar números entre 70-99 do que para processar 1-69.
Por quê? Porque de 1 a 69, eles usam uma lógica. A partir de 70, mudam para outra. 70 é "sessenta-dez" (soixante-dix). 80 é "quatro-vintes" (quatre-vingts). 90 é "quatro-vinte-dez" (quatre-vingt-dix).
Isso é carga cognitiva. É o seu cérebro fazendo trabalho extra só para processar informação.
Agora imagina adicionar outra camada de carga cognitiva: aprender programação numa língua estrangeira.
Você não está só aprendendo lógica de programação. Você está:
- Traduzindo mentalmente do português para o inglês
- Processando a lógica em inglês
- Voltando para português para entender o resultado
- E tentando lembrar se é
elifouelse ifouelseif
É como tentar fazer malabarismo enquanto resolve uma equação.
A falácia do "todo mundo programa em inglês"
Deixa eu te contar um segredo: não, não é todo mundo.
- Python tem versões traduzidas em chinês, francês, português
- BASIC tem versão em chinês e francês (LSE - Langage Symbolique d'Enseignement)
- Pascal tem versão em português (VisuAlg, amplamente usado no Brasil)
- Visual Basic tem versão em Hindi
- Scratch suporta dezenas de línguas e é usado por milhões de crianças
- ALGOL 68 suportava várias línguas nos anos 60
A tradição de linguagens não-inglesas é mais antiga que a internet.
O que aconteceu foi que uma hegemonia cultural nos meios acadêmicos, entre profissionais sênior, e pessoas que vivem e trabalham no estrangeiro, convenceu todos os demais que "programação = inglês" era uma lei natural do universo.
Não é. É só um hábito. E hábitos podem mudar.
Por que conforto importa mais do que você pensa
O estudo de Botswana mostrou algo sutil mas crucial: mesmo quando o desempenho geral era similar entre os grupos, o conforto do grupo bilíngue era significativamente maior.
"E daí?", você pode pensar. "Se o desempenho é igual..."
Aí está o erro. Conforto não é luxo. Conforto é combustível.
Pensa no francês contando até 99 de novo. Ele consegue? Claro. Mas cansa mais. Requer mais atenção. Gera mais fricção.
Quando você programa em inglês pensando em português:
- A carga cognitiva aumenta
- O estresse aumenta
- A velocidade de compreensão diminui
- A probabilidade de desistência aumenta
Sabe qual é a maior barreira da programação? Não é a complexidade dos algoritmos. É a desistência. E sabe o que causa desistência? Fricção constante.
Estudantes confortáveis tentam mais exercícios (como o estudo comprovou - 20% a mais). Estudantes confortáveis persistem. Estudantes confortáveis viram programadores.
Estudantes desconfortáveis viram estatísticas de evasão.
O que estamos fazendo na Design Líquido
Com a Linguagem de Programação Delégua e outras ferramentas, não estamos apenas "traduzindo código". Isso seria reducionismo.
Estamos removendo fricção desnecessária.
Estamos dizendo: você não precisa fazer malabarismo linguístico para programar. Você pode:
- Pensar em português
- Escrever em português
- Debugar em português
- Criar em português
Compare:
Em Python:
contador = 0
while contador < 100:
if contador % 2 == 0:
print(contador)
contador += 1
Em Delégua:
var contador = 0
enquanto contador < 100 {
se contador % 2 == 0 {
escreva(contador)
}
contador += 1
}
Em Pituguês:
var contador = 0
enquanto contador < 100:
se contador % 2 == 0:
escreva(contador)
contador += 1
Você pode experimentar essa lógica aqui.
Qual desses códigos é mais fácil de explicar para um iniciante que fala português como língua materna? Qual tem menos fricção cognitiva?
A resposta é óbvia. Mas levou décadas para termos a coragem de fazer o óbvio.
Os números que importam
Existem 260 milhões de lusófonos no mundo. Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Timor-Leste, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Equatorial, Macau... e as diásporas espalhadas pelo planeta.
Agora imagina:
- 20% mais exercícios tentados
- Significativamente mais conforto
- 66% reportando prazer em programar
- 29% achando mais fácil entender
Imagina o que acontece quando você remove a fricção artificial entre uma pessoa e o conhecimento que ela quer adquirir.
Imagina quantos talentos estamos perdendo porque insistimos que eles precisam pensar como um francês contando até 99, mas em inglês, para resolver problemas em português.
O que a ciência comprova
O estudo da Universidade de Botswana não descobriu nada revolucionário. Ele comprovou cientificamente o que professores de programação em países não-anglófonos já sabiam:
A língua importa. O conforto importa. A fricção cognitiva importa.
Quando um estudante vê se em vez de if, enquanto em vez de while, função em vez de function, a carga cognitiva diminui. Não é mágica. É neurociência básica.
É o mesmo princípio de por que franceses processam 65 mais rápido que 95. Menos passos mentais = menos fricção = melhor aprendizado.
E reconhecer que programação não é inglês. Programação é lógica, abstração, resolução de problemas. E essas coisas existem em todas as línguas.
Para onde vamos
A hegemonia linguística em programação não vai acabar amanhã. Mas cada linha de código em português é uma mudança. Cada estudante que aprende com Delégua é uma prova de conceito.
E um dia, quando olharmos para trás, vamos nos perguntar: "Por que demoramos tanto para perceber o óbvio?"
A resposta é simples: porque às vezes precisamos de evidência científica para validar o senso comum.
A Design Líquido não está inventando nada radical. Estamos aplicando o óbvio.
E agora, finalmente, a ciência está do nosso lado.
https://www.youtube.com/watch?v=kai-4rWY-yY
Referência:
Tshukudu, E., Dodoo, E., Hermans, F., & Mudongo, M. (2024). "Bilingual Programming: A Study of Student Attitudes and Experiences in the African context." Koli Calling '24, ACM.