Achei tua provocação muito pertinente, mas eu enxergo o problema num outro nível.
Para mim, a aparência do texto é quase irrelevante perto do conteúdo. Um texto com “cara de IA”, com conectivos demais ou ortografia impecável não diz absolutamente nada, por si só, sobre a qualidade epistêmica daquilo que está sendo dito. O que interessa é: este enunciado é verdadeiro, bem fundamentado, intelectualmente honesto e útil para pensar melhor sobre algo?
Quando alguém passa a filtrar textos apenas pela forma, fazendo uma leitura do tipo “se parece IA, então certamente não vale a pena”, está operando com um atalho mental que a psicologia cognitiva descreveria como distorção: generalização ou pensamento absolutista. É o clássico “sempre”, “nunca”, “se X então obrigatoriamente Y”, que aparece como crença rígida e empobrece a leitura da realidade. Esse tipo de crença limitante funciona como um filtro automático que decide antes da experiência, e não a partir da experiência.
Do ponto de vista das heurísticas de julgamento, isso se aproxima bastante do viés de representatividade: em vez de examinar o argumento, a pessoa compara o texto com um protótipo mental de “texto de IA” e julga tudo com base nessa semelhança superficial. Heurísticas têm uma função importante de economizar esforço mental, mas a própria literatura em tomada de decisão mostra que, quando não são criticadas, elas produzem julgamentos sistematicamente ruins. O leitor deixa de avaliar evidência, contexto, encadeamento lógico, e passa a se guiar apenas pela superfície gráfica do enunciado.
Se deslocarmos a discussão para a psicanálise, dá para ler esse movimento também como uma forma de defesa. Em vez de enfrentar a angústia contemporânea de não saber mais “quem” escreveu (humano, IA, humano com IA, etc.), o sujeito constrói um estereótipo tranquilizador. Tudo o que tem certa forma é colocado na gaveta do “não me interessa”, e isso preserva uma sensação de controle, mas à custa de empobrecer radicalmente a relação com o texto. Preconceito, nesse sentido, é justamente isso: um arranjo inconsciente que reduz a complexidade do outro a um rótulo, para manter intacta uma imagem de si e do mundo.
E aqui entra uma observação que quase nunca é levada em conta nessa polêmica: o mesmo raciocínio valeria para livros. Autores enviam seus manuscritos para editoras, e uma parte central do trabalho editorial é justamente revisar, aparar excessos, corrigir problemas de linguagem, ajustar estilo e torná-lo mais claro e fluido. O editor, nesse contexto, exerce um papel funcionalmente análogo ao que a IA exerce hoje em muitos textos: um mediador que melhora a forma. Se eu levasse às últimas consequências essa rejeição “pela cara do texto”, eu teria que descartar também livros porque têm “cara de editor”, isto é, porque foram polidos, revisados e tornados mais legíveis por um terceiro. O que mostra que o problema não é a ferramenta em si, seja ela humana ou artificial, mas a nossa projeção em cima dela.
Talvez a verdade incômoda seja outra: muita gente simplesmente não gosta de ler, ou não está disposta a sustentar o esforço de leitura, e então precisa de justificativas aparentemente nobres para abandonar o texto o mais rápido possível. “Parece IA” vira só mais uma racionalização elegante para um gesto muito simples: desistir da leitura antes de se confrontar de fato com o conteúdo. Em vez de dizer “não quero ler”, a pessoa diz “não vale a pena ler porque tem cara de IA”. A função psíquica é a mesma: livrar-se rapidamente do desconforto que a leitura exige.
No fim das contas, esse tipo de filtro não prejudica o texto, prejudica o leitor. Quem recusa qualquer coisa que “cheira a IA” sem sequer testar o conteúdo está, na prática, reduzindo drasticamente o próprio estoque de informação e de ideias. Já quem suspende o preconceito formal, lê, confronta, discorda, checa fonte e decide depois, tende a se tornar muito mais bem informado do que quem vive preso a essas crenças limitantes sobre aparência textual.
Então, se existe um “filtro” relevante aí, eu não o vejo separando texto de IA e texto humano, e sim separando modos de ler. De um lado, quem precisa de garantias formais para se sentir seguro e, por isso, julga por atalho. Do outro, quem aceita a incerteza, se dispõe a analisar o que está dito e entende que um bom argumento continua bom independentemente de ter sido escrito à mão, com editor humano ou com apoio de uma IA. Em termos de acesso à informação e desenvolvimento intelectual, minha aposta é que o segundo grupo leva uma vantagem enorme no longo prazo.